Roberto Tadao Magami Junior

Há um juiz natural para as audiências de custódia?

De acordo com o Conselho Nacional de Justiça, um dos principais objetivos das audiências de custódia é coibir a prisão ilegal ou desnecessária, permitindo que um acusado de crime praticado sem violência ou grave ameaça possa responder em liberdade, evitando assim que supostos criminosos de baixa periculosidade se misturem com pessoas violentas nos presídios.

Daqui já podemos extrair uma pergunta: qual juiz teria melhores condições empíricas de avaliar essas características e os requisitos acerca da prisão? Aquele que lida diariamente com questões de índole penal ou qualquer outro, aí incluídos os que diariamente atuam exclusivamente em causas de direito de família, de questões relacionadas à fazenda pública, isto é, temas totalmente alheios ao Direito Penal? A resposta parece induzir que deveria ser considerado juiz natural aquele investido de atribuições de Direito Penal, mas a realidade hoje é um pouco diferente.

Para além de suas finalidades, o debate no Supremo Tribunal Federal inicialmente se travou em torno de quais hipóteses deveriam ocorrer as audiências de custódia e foi avançando sempre pela ótica da Convenção Americana de Direitos Humanos detentora de status supralegal em nosso ordenamento jurídico, isto é, norma que está hierarquicamente abaixo de nossa Constituição Federal, mas acima, por exemplo, do Código Penal e do Código de Processo Penal, considerados leis ordinárias.

A primeira decisão reconhecendo a necessidade de realização da audiência de custódia se deu no âmbito da ADPF-MC 347 para que ocorressem no prazo máximo de 24 horas contadas do momento da prisão, mas deixou lacunas sobre quais hipóteses de prisão deveria incidir. A partir disso, no âmbito da Reclamação 29.303 restou decidido que todas as prisões (temporárias, preventivas e definitivas), deveriam ser assim submetidas, com o escopo de dar concretude ao artigo 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos, no sentido de que toda pessoa detida seja conduzida à presença de um juiz, a fim de avaliar a legalidade de sua prisão, sem prejuízo do prosseguimento da investigação. Reparem que não foi mencionado no dispositivo qual seria o juízo competente.

Na esteira dos arestos, o Conselho Nacional de Justiça por intermédio da Resolução nº 213/2015 impôs que toda pessoa presa em flagrante delito, independentemente da motivação ou natureza do ato, deve ser obrigatoriamente apresentada, em até 24 horas da comunicação do flagrante, à autoridade judicial competente, e ouvida sobre as circunstâncias em que se realizou sua prisão ou apreensão.

Para o CNJ, a autoridade judicial competente, de acordo com o artigo 1º, § 2º, do mencionado ato normativo, seria “aquela disposta pelas leis de organização judiciária locais, ou, salvo omissão, definida por ato normativo do Tribunal de Justiça ou Tribunal Federal local que instituir as audiências de apresentação, incluído o juiz plantonista”.

A partir disso devemos perscrutar se há lacuna ou omissão sobre o tema apta a permitir que o CNJ regulamente, ou ainda, que assim o façam os TJ´s e TRF´s subsidiariamente, e a resposta é negativa para ambas as perguntas.

Em relação ao CNJ não há lacuna sobre qual magistrado deve conduzir as audiências de custódia, na medida em que o art. 7.5 deve ser interpretado em conjunto com o art. 8º, ambos da Convenção, no sentido de que toda pessoa tem direito a ser ouvida por um juiz ou tribunal competente, isto é, o(a) magistrado(a) cuja lei de organização judiciária local lhe tenha atribuído competência para atuar na esfera penal, em observância ao princípio do juiz natural previsto no artigo 5º, incisos XXXVII (não haverá juízo ou tribunal de exceção) e LIII (ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente), ambos da CF.

Poderia se indagar sobre a possibilidade de interpretar o inciso LIII, da CF, no sentido de que qualquer magistrado previamente designado por um tribunal poderia realizar a audiência de custódia, pois não haveria sentença ou processo ainda.

Contudo, a leitura que deve ser feita é conjunta do Tratado de Direitos Humanos com a CF, pois ao final da audiência de custódia será proferida uma decisão judicial com consequências ao status libertatis do cidadão, na medida em que o artigo 310 do Código de Processo Penal dispõe sobre três possíveis desdobramentos: (i) concessão de liberdade provisória com ou sem fiança; (ii) revogação ou relaxamento da prisão; ou ainda, (iii) a mais grave sanção imposta ao ser humano: restrição à liberdade ou substituição por outra medida cautelar, o que demonstra ser essencial uma autoridade judiciária com competência na esfera penal para melhor valorar juridicamente os fatos.

Desta maneira, é essencial a observância do denominado princípio do juiz natural, que de acordo com Luigi Ferrajoli, significa três coisas diferentes ainda que conexas: a necessidade de que o juiz seja pré-constituído pela lei e não constituído post factum; a impossibilidade de derrogação e a indisponibilidade das competências; a proibição de juízes extraordinários e especiais[1].

Tanto é assim reconhecido pelo próprio CNJ que a Ministra Maria Tereza de Assis Moura enquanto Corregedora, no dia 06 de agosto deste ano, reconheceu a impossibilidade de que a lei de organização judiciária local e ou atos normativos de Tribunas definam o conceito de autoridade judicial competente para fins de apresentação e análise de prisões preventivas, temporárias e definitivas relacionadas ao início do cumprimento da pena, inclusive dos devedores de alimentos, pois nestes casos a audiência de custódia deve ser realizada sempre pelos juízos naturais que determinaram a ordem de prisão, e não por centrais, órgãos congêneres ou por plantonistas[2].

A única exceção afastada pela Ministra Maria Tereza foram as prisões em flagrante que na sua compreensão poderiam ser realizadas por quaisquer juízes.

Entretanto, rendendo todas as vênias à Ministra Maria Tereza, mesmo as prisões em flagrante devem ser analisadas por juízes que detenham competência exclusiva para as matérias de Direito Penal, pois a Convenção Americana de Direitos Humanos (Decreto nº 678/92) assegura que as audiências de custódia sejam realizadas por autoridades judiciárias previamente designadas por lei para o exercício de determinadas competências e, desta forma não se poderia ampliar a competência jurisdicional de todo e qualquer juiz por intermédio de ato normativo editado pelo Presidente do TJ ou de TRF.

Por esse motivo, é digno de críticas o Expediente nº 2016/13232 monocraticamente criado pela D. Presidência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, que atribuiu a competência para a condução das audiências de custódia a magistrados que atuam há vários anos em feitos exclusivamente relacionados a Direito de Família, Direito do Consumidor, Fazenda Pública, etc.

É indene de dúvidas a qualidade da prestação jurisdicional da Corte Bandeirante. Não obstante, a audiência de custódia possui peculiaridades que demandam uma percuciente análise de magistrados que estejam mais habituados a lidar com pessoas acusadas de crimes, de forma a assegurar os direitos e as garantias individuais do preso, e ao mesmo tempo, conciliar com os interesses da sociedade.

Exemplificando a gravidade deste expediente que exorbitou os limites da competência normativa dos Tribunais de Justiça, trazemos um caso limítrofe: poderia o Presidente do Tribunal monocraticamente alterar a competência de um dos Desembargadores ou de uma Câmara inteira de Direito Empresarial para que passe a realizar audiências de custódia? Evidente que não.

De acordo com a reserva legal, a competência das varas especializadas somente pode ser modificada por lei, jamais por ato administrativo, seja ele de qual natureza for, e o artigo 28 da Lei de Organização Judiciária do Estado de São Paulo já atribui aos juízes das varas criminais a competência exclusiva para (i) processar e julgar as ações penais e seus incidentes, por crimes e contravenções; (ii) conhecer e decidir as questões relativas a habeas corpus, prisão em flagrante, prisão preventiva e liberdade provisória; e (iii) a praticar todos os demais atos atribuídos pelas leis processuais penais a Juiz de primeira instância.

É necessário rememorar inclusive uma decisão emblemática do próprio Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo que impede ao novo juiz da causa reverter a decisão de concessão de liberdade proferida pelo juiz da audiência de custódia sem qualquer fato novo, na medida em que essa atribuição cabe exclusivamente à segunda instância, o que demonstra a importância de se ter um magistrado que detenha competência em matérias afetas ao Direito Penal[3].

Ademais, o Colendo Órgão Especial do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo já disciplinou a competência para a realização das audiências de custódia a partir da Resolução nº 740/2016, que estabelece em seu art. 3º, § 3º “ser competente para a organização e realização das audiências de custódia a Vara ou Juízo que possua o Anexo da Polícia Judiciária, mediante escala de juízes da Circunscrição Judiciária”, escala que, deve ser realizada entre os juízes exclusivamente competentes para a matéria.

Por conseguinte, tendo em vista que as audiências de custódia ainda estão em processo de amadurecimento e fortalecimento, é importante a revisitação do tema para que sejam melhor delimitadas as competências normativas tanto do Conselho Nacional de Justiça quanto dos Tribunais à luz da Convenção Americana de Direitos Humanos (controle de convencionalidade), e os juízes considerados competentes sejam aqueles que possuam atribuições exclusivas de Direito Penal previamente definidas em lei, impedindo que os Tribunais atribuam essas competências a todo e qualquer juízo.

*Roberto Tadao Magami Junior, advogado. Pós-graduado e mestre em Direito pela PUC-SP

[1] FERRAJOLI, Luigi. Direito e Razão Teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002. p. 472

[2] Fonte: https://www.conjur.com.br/dl/audiencia-custodia-feita-juizo-ordenou.pdf. Acesso em 10 ago. 2022.

[3] Habeas Corpus nº 2148444-14.2018.8.26.0000, 2ª Câmara de Direito Privado, Relatora Desembargadora Kenarik Boujikian, j. 08.10.2018.